segunda-feira, 5 de julho de 2010

Melodrama para marionetas foi desta forma que o grande Don Ramón María del Valle-Inclán definiu A Cabeça do Baptista, peça que configura o “Retábulo da avareza, da luxúria e da morte”.

O seu argumento é conciso, categórico, como uma pancada imprevista que com o seu aperto quisesse paralisar as personagens de um rito que vinham entretendo as horas entre sombras de nada.

Alberto Saco, conhecido por “El Jándalo”, chega a uma aldeia indeterminada, num lugar inefável com o propósito explícito de vingar-se de Don Igi, um indiano que fora em tempos amante, ladrão e assassino da Baldomerita, a mãe do recém-chegado.

Don Igi vive agora, à falta de melhor companhia, amancebado com Pepona, uma espécie de prostituta irreverente e vulgar.

Diante da aparição de Alberto Saco, a ela irá confiar os seus medos e nela encontrará o seu maior aliado. Os dois planeiam a vingança, mas é Pepona quem lhe dá o alento moral que tem de resultar numa execução fria e exacta. Uma crueldade premeditada, pérfida e nocturna envolve a peça, no gesto fatídico da prostituta que com precisão forense indica a direcção e o sítio onde Don Igi aterrorizado deve fazer penetrar a faca assassina e covarde que irá provocar a morte a Jándalo. Este gesto criminoso de Pepona é suficiente para culminar o drama. Mas numa volta surpreendente no enredo dramático, Valle-Inclán provoca uma reacção surpreendente a Pepona, talvez tão assombrosa para o espectador como para a própria a quem (agora já o sabemos) o que excitava não era a morte, mas matar. Para ela o sangue derramado acaba por ser uma espécie de ejaculação sanguinolenta, tal como se o acto homicida fosse o clímax do amor e a morte um afrodisíaco que atiçasse a sexualidade adormecida. E a ela se entregava com um Jándalo cadáver.

Esta reacção mórbida da personagem não só infunde ao horror um carácter de necrofilia, mas também mostra a complexa psicologia do ser humano: o grande enigma que o indivíduo representa para si mesmo e para os outros.

Esta reacção libidinosa não significa que Pepona fosse exclusivamente “puta velha”, mas a que observa, no vazio que lhe proporciona a morte, o seu próprio vazio pessoal e emocional. E surge desta descoberta inconsciente o desespero, a amargura e a raiva, como única moeda que pode retribuir a cobardia e a cobiça de Don Igi.

Pepona não só reconhece no crime que a cobiça e a luxúria conduzem à morte, mas também a maior importância desta sobre aquela, pois no fim apercebe-se da sua capacidade para amar, ainda que, fatalmente, já seja tarde demais.

A tragédia para estas personagens do melodrama começa precisamente onde o melodrama e a marioneta concluem.

Finalmente, convém sublinhar que A Cabeça do Baptista é uma obra num acto que tem uma óbvia afinidade simbólica com a história grotesca de São João Baptista, Salomé e Herodes.

Manuel Guede Oliva

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